Lobo
Nativo da noite,
Procurei abrigo
No porto da madrugada:
Despachei em navios
De madeira e linho
Os últimos medos
E engarrafei em vasos sagrados
Minha safra de lágrimas.
Com as mãos nuas
Despi as ilusões
Vestindo-me com um sorriso
Que ganhei da lua
Quando plantava
Marés cheias.
Chorei a agonia
De mil crepúsculos
E esperei feliz
As manhãs serem paridas
Para acalentá-las
Em braços de sal e ondas.
Soldado de tantos deuses,
Sepultei velhas fés
Para que a esperança
Pudesse ser amante
Do meu cotidiano.
Revoguei o futuro
Do meu cálculo
E fiz de presentes
O tempo dos meus verbos.
Zombei da dor
E doei-me
Em nacos de carnes.
Quando roubaram
Minha estrada
Corri com as asas
Que herdei de uma
Cigana de seios fartos
E juízo curto.
(aprendi a caminhar na brisa
deixando pegadas no sereno).
Fiz-me corsário
Sem naus e sem ódios.
Surpreendi amores
Em desertas ilhas
E guardei um tesouro
De carícias e afetos,
Perfumes e madeixas,
Peles de ébano,
Pernas de alabastro,
Lábios de veludo,
Línguas vorazes...
Descartei a ira de Aquiles
E a astúcias de Odisseu:
Quando ouvi o canto das sereias
Soltei-me do mastro
E brinquei com a morte.
Vendo-me assim,
Ainda pensas que sou metade?
Pois, saibas,
Nunca ninguém foi tão inteiro:
Levantei acampamento
Em remotos bares
E lá hasteei meu estandarte
De sangue e perdões.
Fiz dos amigos
Meu invencível exército
E da fé no homem
Meu derradeiro credo.
Compartilhei o maná
Dos sonhos
E pus a letra
Numa canção de exílio
Desafiei da lei
Todos os interditos:
Imprimi na alma
Uma crônica alegre
Para que assim
Os cegos a lessem.
Certa madrugada
De breu intenso
Matei a covardia:
Ateei fogo em minhas barbas
E vivi a alegria sagrada
De Lavrar a luz
Num campo soturno de trevas.
Agora devo sangrar a alvorada;
Pisar sem medo a praia derradeira
Lanço meu uivo numa gargalhada,
Sorvo, tranquilo, a última saideira.