DE PALAVRAS E DE COISAS
Para o aniversariante Carlos Drummond de Andrade
Café é uma palavra que eu gosto de graça, quatro letras, um
acento, açúcar, adoçante ou nem, gosto, textura e cheiro a serviço da energia,
do calor e dos encontros. Encontro é uma palavra que eu gosto à toa, no
corredor, quando a gente menos espera, no balcão ou então logo ali, na mesa do
canto, na madrugada silenciosa ou no finzinho da tarde, amanhã, agora, qualquer
hora, depois do expediente ou nos dias de folga.
[Delícia].
Folga é uma palavra que eu gosto de graça, a palavra e a coisa
em si, sair cedo pra ver o mundo com o dia claro, andar a pé até a praia,
desafinar debaixo do chuveiro, cuidar das lembranças, das panelas e das
samambaias. De samambaias também gosto à toa, da palavra e da coisa em si.
Gosto do som de dizer samambaia, do verde plástico delas, da sensação de cheio
delas, dependuradas e firmes como poucas coisas no mundo conseguem ser ao mesmo
tempo.
Tempo é uma palavra que eu gosto de graça, cinco letras,
gramática, música, meteorologia, poesia ou o jeito que a natureza deu pra que
as coisas não acontecessem todas num único instante. Instante é boa, ao
contrário de medíocre, que acho feia. Prefiro ridícula, que a minha afilhada
menor pronunciava ri-dí-cu-na, com N, sem ter muita ideia do que significava,
do jeito mais fofo do mundo. Mundo, aliás, é outra palavra simpática, que nem
coisa, que quase nunca decepciona.
Canção é uma palavra que eu gosto de graça. Ordinária é outra,
comum, habitual, repete. Espera também é boa, embora as esperas sejam em si um
troço dispensável. Trem é igualmente boa. Melhor ainda é a história de que os
astecas, no dia exato em que chegavam ao meio da vida – eles sentiam a hora
certa -, notavam uma súbita vontade de tomar um trem para algum lugar. Como os trens
não tinham sido inventados, eles acabavam por guardar uma tristeza que vinha da
vontade de algo que ainda não sabiam.
Gosto de compreensão, da palavra e da coisa em si, capacidade de
andar junto apesar do descompasso e percepção de que aceitar às vezes funciona
melhor que qualquer força. Força eu não gosto, mas acaso é uma palavra bonita
demais da conta. Amigo é palavra boa e coisa melhor ainda, um olho pra ver o
Roberto e o Erasmo emocionados no palco, um ombro pra ouvir lamentos, um riso
pra rir quando os lamentos terminam, um par de pernas para bater e uma dose
extra de disposição pra beber Absolut de baunilha, enterrar os que nos deixam
cedo, puxar a orelha quando precisa, receber e dar notícia.
Notícia é uma palavra que eu gosto de graça, que nem café,
encontro, folga, samambaia, tempo, mundo, troço, trem, pepperoni, balanço,
liberdade, silêncio e Carlos Drummond de Andrade.
Idéia também, invenção abstrata, pensamento, intenção, moda,
imaginação, nascidos de uma conversa regada a margaridas, durante as insônias,
na cozinha, diante dos discos, na sala, no bar ou no banheiro, paz, nudez ou
semi, sossego, o lugar – alguém disse, com toda a razão – de onde saímos mais
limpos, mais puros e mais dispostos.
Pureza é uma palavra que eu gosto à toa, e teu é o pronome mais
bonito de todos. Saudade é boa, mas é ruim. Tagarelice é divertida. Blablablá é
melhor ainda. Movimento é cool, igual café, encontro, folga, tempo, mundo,
trem, balanço, ideia, razão, pureza, blablablá e o blues do homem de cabelo
cinza – o dela é cor de abóbora, e abóbora é uma palavra que eu gosto de graça.
Balanço é uma palavra que eu gosto de graça, quase tanto quanto
encanto, o sorriso da minha amiga diante das histórias, o modo como o futebol
alegra os domingos dela e os afetos preenchem as suas ausências. Vazio tem um
quê de bom: por pior que seja, sempre pode ser um primeiro passo.
Finais acontecem, mas bonita mesmo é a palavra começo, um beijo
demorado, uma conversa de uma madrugada inteira, descobrir as preferências e os
desgostos e as vírgulas da vida, uma viagem ou o primeiro parágrafo daquele
livro em que, muitos anos depois, diante do pelotão de fuzilamento, o Coronel
Aureliano Buendía havia de recordar a tarde remota em que seu pai o levou para
conhecer o gelo.