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A melodia é conhecida, e é
difícil ouvi-la sem cantarolar os versos mentalmente: “Nossa Senhora/ Me dê a
mão/ Cuida do meu coração”. O que Nando Reis canta sobre essas notas, porém, é:
“Nanananana / Nananana/ Nanananananana”. É , aliás, o que faz ao longo de toda
a música. Ateu, foi a forma que ele encontrou de driblar a mensagem religiosa e
registrar a canção, que acha linda, em seu disco “Não sou nenhum Roberto, mas
às vezes chego perto” — lançado no ano passado e dedicado ao repertório de Roberto Carlos.
As canções haviam sido gravadas e lançadas no ano passado com autorização de Roberto —na ocasião, o único pedido de Nando que foi negado foi a regravação de Detalhes. Mas, ao que parece, o compositor só ouviu as interferências do cantor paulistano (em tudo reverentes à essência do homenageado, cabe notar) depois de o álbum lançado, ou quando não havia mais como deter o processo de lançamento. Por isso só agora vieram as mudanças.
O
veto a Nossa Senhora de Nando não é a primeira ocasião em que
Roberto atua em defesa do que imagina ser o melhor para a mãe de Jesus.
E ele já foi bem longe nessa defesa. Em 1986, escreveu um telegrama ao
presidente José Sarney,
cumprimentando-o pela censura ao filme Je vous salue Marie,
de Jean-Luc Godard (“que não é obra de arte ou expressão
cultural que mereça a liberdade de atingir a tradição religiosa de nosso povo e
o sentimento cristão da humanidade”, escreveu o cantor, sem ter visto o filme).
As convicções
religiosas de Roberto já fizeram com que ele se recusasse a gravar Se
eu quiser falar com Deus (de Gilberto
Gil). O baiano compôs a canção para o
Rei em 1980, mas palavras da letra, como “diabo” e “medonho”, assim como o teor
agnóstico de sua poesia, não encaixavam nas ideias do cantor. “'Se eu quiser
falar com Deus' é uma música que fala de Deus diferente da forma que eu
falaria, por isso não gravei”, chegou a justificar na época, como conta o historiador Paulo Cesar de Araújo na biografia Roberto Carlos
em detalhes (proibida, aliás, devido a um
acordo com o autor após longa batalha judicial).
Um misto de
religiosidade e TOC (Transtorno Obsessivo Compulsivo) levou Roberto a vetar a gravação de Quero
que vá tudo pro inferno a qualquer um que pedisse — “80% dos artistas
de pop-rock”, segundo seu empresário Dody Sirena. Mais: em 2002, ele não
autorizou que a música integrasse a reedição do disco que Nara Leão gravou em
1978 dedicado a ele, intitulado exatamente ... E que tudo mais vá pro
inferno. O álbum foi relançado com uma faixa a menos e rebatizado de Debaixo
dos caracóis dos seus cabelos.
Apenas em
2016, depois de 30 anos, Roberto voltou a cantar a palavra “inferno”. Poucos
anos antes, já havia vencido outro bloqueio e entoado o verso original “Se o
bem e o mal existem/ Você pode escolher”, de É preciso saber viver.
Ele passara décadas cantando “Se o bem e o bem existem”.
Seu
esforço em evitar ideias que pudessem sugerir algo que ele identifica como
“maligno” fez com que, em 2018, ele chegasse a reconsiderar a participação da
atriz Marina Ruy Barbosa em seu especial de TV de fim de ano. Na época, ela
vivia uma personagem na novela O sétimo guardião que Roberto
identificou como sendo “meio bruxa”. O veto não se concretizou e eles acabaram
cantando juntos Na paz do seu sorriso.
Mas a fé
de Roberto e o TOC não são os únicos motivos pra que ele seja visto como um
compositor que não libera suas canções facilmente. Muitas vezes, ele
simplesmente deseja proteger o que identifica como possíveis danos à sua
imagem.
Foi por
isso, por exemplo, que impediu que sua música fosse usada na série Narcos, sobre a trajetória de Pablo Escobar. Não seria um uso gratuito:
o traficante e sua mãe eram grandes admiradores do brasileiro (ele tinha
uma jukebox só com canções do artista), e Roberto Escobar,
irmão de Pablo, chegou a declarar em 2013 que o cartel contratou um show do
cantor em Medellín na década de 1980. A assessoria do cantor justificou o veto
da canção na trilha da série de José Padilha: “Ele (Roberto) analisou a série,
viu onde entraria a música e achou que não tinha nada a ver”.
Outra
ocasião em que se especula que a tesoura de Roberto tenha atuado em prol de sua
imagem foi na exibição pela Globo do filme Tim Maia, de Mauro Lima.
Roberto já havia se queixado da cena em que, já famoso, era retratado recebendo
Tim (seu amigo de infância e adolescência) com indiferença, num camarim. Em
seguida um de seus assessores atirava uma nota amassada para o autor de Você,
que fora até o amigo pedir uma ajuda. Na exibição na TV aberta, a cena foi
retirada.
Mas houve
casos de vetos que não tiveram a ver nem com preservação de imagem, nem com
TOC, tampouco com religião. Roberto não permitiu a execução de uma versão que o
grupo Aviões do Forró fez de sua Esse cara sou eu, na época ainda
uma das mais tocadas do Brasil. Queria evitar concorrência. Noutras vezes, não
há motivos identificáveis. Zé Renato nunca recebeu resposta para o pedido de
autorização das músicas compostas pelo Rei que gostaria de incluir em É
tempo de amar, disco que fez em 2008 com repertório da Jovem Guarda. E
Paula Fernandes não pôde incluir em seu DVD de 2014 duetos que gravou com o
cantor, mas o isentou de culpa, atribuindo a responsabilidade à gravadora de
Roberto.
É
estranhamente revelador que uma das grandes vítimas dos vetos de Roberto seja…
o próprio Roberto. Ele proibiu que Roberto Carlos, uma
fotobiografia oficial lançada em 2014, tivesse qualquer texto que não fossem
versos de canções suas —a despeito da insistência dos editores para que a
publicação tivesse ao menos legendas que contextualizassem as imagens. Mas o
maior caso de veto autoimposto diz respeito a seu primeiro disco, Louco
por você, de 1961. Os motivos podem ter a ver com o TOC (é o único no qual
ele não aparece na capa), com religião (a faixa Não é por mim condiciona
a existência de Deus ao amor de uma mulher, algo impensável no Roberto
ultracatólico) ou simplesmente com questões técnicas e artísticas (o disco traz
um artista sem personalidade e imaturo). O que se sabe é que Roberto nunca
assumiu o álbum nem considerou seriamente seu relançamento —chegou a agir
rapidamente para retirá-lo do iTunes em 2012, quando por algum engano ele foi
colocado à disposição.
Pela grandeza artística de sua obra (construída em grande medida com o parceiro Erasmo Carlos, fiel escudeiro) e pelo alcance dela (em todas as direções que se possa pensar na sociedade brasileira ao longo do tempo), Roberto tem legitimidade pra carregar o título de Rei. Que ouça seus súditos — e entenda seus recados em tudo que eles carregam de dureza e de afeto, mesmo quando chegam na forma de um “nanana”.
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